Ramiro acorda e ninguém o reconhece. Ninguém sabe quem ele é. Nem os colegas da pensão onde mora, nem Maya, por quem alimenta uma paixão de longe. Agente administrativo da Biblioteca Pública do Estado, ele se lança na procura desesperada por alguém que o reconheça. Obsessivo em seus métodos e racionalizações, perturbado pelas lembranças que lhe atravessam e por angústias de cancelamento, Ramiro anseia encontrar algum sentido verossímil a essa estranha constatação — seu desaparecimento aos olhos dos outros. Expulso da pensão, ele erra numa Porto Alegre que arde em calores surreais, buscando companhias, tetos, olhos que lembrem dele. Inconsciente, busca no amor alguma resposta, ainda que vaga.
“A vida pode ser simples quando estamos do lado de cá do limite. Refeições disponíveis, salário em nível bom, um teto, roupas, quem sabe até uns livros, um celular de boa capacidade e linha na internet. De que mais precisamos?
A vida é simples quando andamos por ela e somos chamados pelo nome. Quando nos reconhecem e nos reconhecemos. Experiências, vivências, família, amor, tudo tem nome e data, tudo nos posiciona com serenidade no grande tumulto do universo: somos quem somos porque a história e os outros nos garantem que assim é, assim somos.
Mas o que se precipita quando nada nos devolve a imagem certa, quando as percepções e as coisas todas não organizam nosso mundo a contento?
Manoel Madeira construiu aqui uma narrativa singular: um relato que anseia por paz de espírito mas dá a ver a trajetória demoníaca de um indivíduo que perdeu coisas e pessoas com que havia construído sua identidade, do passado remoto, pai e mãe e infância inocente, ao presente imediato, na pensão degradante e no emprego desvalorizado.
Perdeu e seguiu vivendo, nas ruas da mesma Porto Alegre bem conhecida, num
supermercado igual a qualquer outro, junto a catadores de rua como aqueles que diariamente evitamos.
Perdeu mas busca, com o desespero dos que ultrapassaram o limite, recuperar um fio, um suspiro, um lampejo, capaz de recolocá-lo num patamar mínimo de decência vital.
Escrito num ritmo que combina ligeireza no miúdo e devastação no conjunto, Os olhos dos outros é um romance magnífico sobre nosso tempo.”
Luís Augusto Fischer
Professor e escritor