Em A filha do Dilúvio, Miguel da Costa Franco pariu um texto das entranhas de uma sociedade doente, anestesiada pela frieza.
De um lado, um casal de classe média, uma herança inesperada e a ascensão social; de outro, moradores de rua, o cruento desenrolar da vida em meio à miséria e à falta de opções. Duas realidades paralelas, que se encontram de forma explosiva, reorganizando desejos, afetos, traumas e dilemas pessoais. Para alguns, chorar é da vida. Para outros, o conforto já está dado. Os privilégios contra a falta de direitos. Gerar descendência passa a ser uma escolha e um conflito, em um país em construção, imerso em desigualdade.
Trecho:
“Os dois parceiros passariam a madrugada inteira nessa novela encardida. Rosa, bufando e praguejando, foi se livrando das roupas aos poucos, até ficar totalmente nua. Caçapava, na maior parte do tempo, assobiava milongas e chamamés. No mais, tinham com eles o crepitar do fogo, o frescor úmido da brisa, os sapos e os grilos, o desassossego das águas buliçosas do rio lambendo o juncal e as pedras da margem.
A cadela Furiosa, companheira dedicada, se encarregava de vigiar o acampamento erguendo as orelhas e o focinho a cada tanto e acoando para os bichos, visíveis ou invisíveis, que se aproximavam.
Quando as dores nas costas apertaram e uma manada de elefantes começou a pisotear sem dó os quadris de Rosa, esmigalhando o que podia de seus ossos, ela se pôs de quatro, como um animal. Era como ficava mais confortável. Já pouco ouvia do que o outro lhe perguntava. Com os sentidos voltados para o seu interior, circulava por outros mundos.”